O facto é que me interessa muito mais um padeiro que um economista.
Se ao menos a gente pudesse viver com as coisas mais simples em vez de recordar as complicadas. Voltar à pobreza do elementar: luz, água, pedra. O avô de alguém que me é querido dizia de uma pessoa boa É bom como o pão e ao lado disto que maior elogio se pode fazer? A nossa língua torna-se maravilhosa com palavras como estas É bom como o pão e lembro-me das mulheres que beijavam o pão duro antes de o deitar fora, da minha avó que se horrorizava ao ver um pão ao contrário: punha-o logo direito a pedir desculpa em silêncio, movendo a boca. Sempre me senti bem nas padarias: o cheiro, o lume, os padeiros enfarinhados que eu achava, acho ainda, serem anjos que se transviaram, de braços cobertos por uma poeira celeste. Tudo neles era branco até as sobrancelhas, as pestanas. O olhar branco também. Os gestos. Não olhos cegos, olhos brancos. E eu à porta a espantar-me. O eco das vozes nos tijolos, dos passos, da lenha no forno. Bom como o pão: ora toma, António. Aprende a escrever à maneira. O facto é que me interessa muito mais um padeiro que um economista. Ou um gestor.
Criaturas que, não sei porquê, me dão pena: economistas, gestores, administradores, directores, banqueiros. Deve ser triste ganhar dinheiro assim. O que sonhará um economista, a que brincava um gestor em criança? Ou nasceram já crescidos? Imagino-os debaixo do chuveiro, de gravata, a falar ao telemóvel. E sabe-se que são velhos não pelo aspecto mas porque quando contam que arranjaram uma secretária boa se referem a um móvel. O que sonhará um economista posso imaginar mais ou menos, agora o que sonha a mulher de um economista é que me preocupa. Se eu fosse mulher de um economista sonhava com canalizadores ou mecânicos de automóvel, homens que usam as mãos e não lêem revistas de golfe nos domingos de chuva. Estou a brincar. Não conheço nenhum economista, aliás. Se conhecesse abria-lhe logo a tampa a fim de espiar o que traz na barriga: cartões de crédito, canetas caras, camisas por medida? Sempre andei mal enjorcado, eu, para desespero da minha mãe:
Andas tão mal enjorcado, filho.
Todos os anos a minha companhia lá da guerra faz um almoço com os que sobejam da miséria em que andámos. Não neste último almoço, no penúltimo, o furriel Firmino Alves começou a anotar os telemóveis dos nossos camaradas para os contactos da refeição seguinte, até que chegou ao Pontinha. Pontinha é a alcunha do ordenança da messe de oficiais, que morava na Pontinha. Como a cabeça dele era grande (continua a ser grande) chamavam-lhe também Porta-aviões porque dava para os aviões aterrarem.
O Pontinha, como muitos dos soldados, vive com dificuldades. Ao fim-de-semana engraxa sapatos na mira de equilibrar o orçamento. Gosto muito do Pontinha a quem obrigava a cortar a carne em bocados de dois por três centímetros, por haver decidido ser a capacidade da minha boca. Media aquilo e exigia Quatro milímetros a mais, Pontinha, corta outra vez e o Pontinha, que remédio, cortava. Ainda hoje, nesses almoços, me quer cortar a carne. Falar nos meus camaradas comove-me: a expressão irmãos de armas é tão verdade. Enquanto nos aguentarmos por cá. Mesmo depois. Zé Jorge: continuamos irmãos de armas. Cabo Sota: admiro a tua coragem até ao fundo da alma. Sozinho com a Breda, uma metralhadorazeca, aguentou um ataque.
E vive mal, percebem? Como se deixa viver mal um herói? Ao acompanhá-lo ao táxi em que voltava, doente, ao Alentejo, avisei o condutor:
Você leva aí um grande homem, sabia, um dos maiores homens que conheço e, como todos os grandes homens da guerra, de uma infinita modéstia, bondoso e sereno. Não lhe chego aos calcanhares. Cabo Sota, tu mereces a continência de um general. O Zé Luís, oficial de operações especiais, que em matéria de coragem não necessitava de aprender com ninguém:
Eram duros
expressão que constitui para nós o supremo elogio. Adiante. Contava eu que o furriel Firmino Alves anotava os telemóveis até que chegou ao Pontinha e como fizera com os outros perguntou:
Tens um telemóvel, Pontinha?
e o Pontinha logo, a mostrar serviço:
Não, mas a minha mulher tem um microondas não fosse a gente pensar que ele era um badameco qualquer. Pode parecer esquisito ou parvo ou o que quiserem, mas quem cortava a minha carne era um magnata cuja mulher tem um microondas, e aí está o melhor título de nobreza (aliás o único) que possuo. Este ano o Pontinha, depois de me desdobrar o guardanapo (se eu o desdobrasse ele ofendia-se) olhou-me bem nos olhos e declarou:
Se quiser vou para sua casa, faço-lhe o comer, dou-lho e não levo um tostão por isso e eu todo arrepiadinho de ternura. Boaventura, Nini, Licínio, vocês todos caramba como a gente somos irmãos. Unamuno, que muito respeito, tem páginas admiráveis acerca da valentia dos portugueses. Tens razão, Zé Luís: eram duros. Ganas de explicar às mulheres deles, aos filhos deles, o orgulho que tenho em ser amigo dos pais, em que os pais sejam meus amigos. Não: irmãos de armas. Não: irmãos. E bons como o pão. Ao lado disto que maior elogio se pode fazer? Ao menos que o País os beije antes de os deitar fora e lhes peça desculpa. E há mais anjos para além dos padeiros, de arma nas unhas mata fora. Nenhum deles é banqueiro, claro. Nem administrador. Nenhum deles joga golfe. Jogaram golfe num campo de um só buraco onde não é a bola que cai.
É um rapaz de vinte anos. E acabo aqui, antes que seja tarde para marcar o número de um microondas.
António Lobo Antunes
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
Death Cab for Cutie
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) sexta-feira, dezembro 12, 2008
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