sábado, 17 de outubro de 2009

VietNam



Meu amor

Lembras-te daquela vez em que não fomos a Samarcanda? Escolhe­mos a melhor época do ano, o princípio do Outono, os bosques e as matas à volta de Samarcanda, quando as colinas áridas começam a descer e a vegetação a espreitar, incendeiam-se de folhas vermelhas e de um amarelo ocre, e o clima é ameno, dizia o nosso guia, lembras-te do nosso guia?, comprámo-lo numa pequena livraria da íle Saint-Louis, Ulysse, especializada em livros de viagens, a maior parte dos quais usados e muitas vezes sublinhados ou anotados pelas pessoas que tinham feito aquelas viagens deixando nos guias as suas anotações, aliás muito úteis, cipo: «pensão a recomendar», ou «estrada a evitar, perigosa», ou então neste armazém vendem-se tapetes de qualidade a preços acessíveis», ou ainda «cuidado, este restaurante aldraba na conta». (...)
De facto, a viagem a não fazer era mesmo a Samarcanda. Guardo uma recordação inesquecível dessa viagem, e tão nítida, tão rica de por­menores, como só as coisas realmente vividas na imaginação nos podem oferecer. Sabes, eu andava a ler um filósofo francês que observou até que ponto o imaginário obedece a leis tão rigorosas como as do real. E o imaginário, meu amor, não tem nada a ver com o ilusório, que é uma coisa completamente diferente. Samuel Butler era de facto um tipo ex­traordinário, não só pelos fabulosos romances que escreveu mas pela sua maneira de ver a vida. Ocorre-me agora uma frase sua: «Posso tole­rar a mentira, mas não suporto a imprecisão.» Mentiras trocámos nós muitas na nossa vida, meu amor, e aceitámo-las todas de parte a parte, de tal modo eram realmente verdadeiras no nosso imaginário ansioso. Mas houve uma delas, ou, se preferires, houve uma mentira múltipla em torno de um mesmo facto real, que nos perdeu para sempre, porque era uma mentira falsa, porque era o ilusório, e o ilusório é necessariamente impreciso, existe apenas no nevoeiro da nossa auto-ilusão. Nos nossos so­nhos sempre fizemos como Dom Quixote, que leva o seu imaginário até ao fim, um imaginário que pressupõe a loucura, desde que seja exacta: exacta na topografia da paisagem real que ele atravessa com a sua imagi­nação. Alguma vez pensaste que o Dom Quixote é um romance realista? E no entanto, um belo dia, transformas-te subitamente de Dom Quixote em Madame Bovary, com a sua incapacidade para definir os contornos daquilo que desejava, para decifrar o lugar onde se encontrava, para contar o dinheiro que gastava, para perceber as asneiras que fazia: eram coisas reais e tudo aquilo lhe parecia ar, e não o contrário. A diferença é enorme: não se pode dizer «estive numa cidade longe daqui», ou «era um homem solícito que me fazia companhia», ou «não creio que fosse amor, antes uma espécie de ternura». Não se podem dizer coisas destas, meu amor, ou pelo menos não mas podias dizer a mim, porque se tratava de uma ilusão tua, de uma pobre e patética ilusão apenas tua: aquela cidade tinha um nome concreto e não ficava tão longe como isso, e ele era apenas um homem de certa idade com quem tu ias para a cama. Era o teu amante que julgavas feito de ar, mas que era de carne e osso.
É por isso que te recordo a viagem que não fizemos a Samarcanda, porque essa sim, essa foi verdadeira e nossa e farta e vivida. E por isso continuo o nosso jogo. Como diz aquele filósofo de que te falei, a me­mória reproduz o vivido, é precisa, exacta, implacável, mas não produz nada de novo: é este o seu limite. A imaginação, em contrapartida, não pode evocar nada, porque não pode recordar, e é este o seu limite: mas em compensação produz o novo, qualquer coisa que não existia, que nunca existiu. Por isso mesmo recorro a estas duas faculdades capazes de se ajudarem mutuamente e volto a recordar aquela nossa viagem a Samarcanda que não fizemos mas que imaginámos até ao mais exacto pormenor.



António Tabucchi

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