Por mais que o deseje, não consigo viver em literatura. Felizes os que o conseguem. Viver em literatura é suprimir toda a interferência do que lhe é exterior - desde o peso das pedradas ao das flores da ovação. Suprimir mesmo ou sobretudo a conversa sobre ela, desde a dos jornais à dos amigos. Fazer da literatura um meio enclausurado em que a respiremos até à intoxicação e nada dele transpire para a exterioridade. Viver a arte como uma mística, um transporte de inebriamento, uma iluminação da graça, uma inteira absorção como de um vício inconfessável. Vivê-la na intimidade de uma absoluta solidão em que toda a ameaça de público esteja ausente como numa ilha que a impossibilidade de comunicação tornasse de facto deserta. Os recém-casados isolam-se para defenderem dos outros a mínima parcela da paixão. A vida em arte devia ser uma viagem de núpcias sem retorno. Só então se conheceria tudo o que a arte é para nós e a inteira verdade com que nós somos para ela. Mas não. Há que viver uma vida dúplice entre o estar a sós com ela e o permanente convívio, nem que sejam uns breves instantes à porta com os indiferentes e os maledicentes e os curiosos e mesmo os admiradores de que se necessita na nossa inferioridade moral para nos confirmarem no bom resultado da aposta. Assim se não vive no monaquismo, que é a sua inexorável verdade, mas se professa numa ordem quase laica em que se tem de viver lá fora e só de vez em quando se regressa à nossa cela. Só há arte da solidão, e os que lhe pregam um destino de rua deveriam defender que se fizesse amor na praça pública. Os efeitos desse viver solitário, ou seja, de exclusiva absorção na arte, sentir-se-iam naturalmente em quem viesse a frequentar-lhe a obra. Mas sentiam-se como os milagres de um santo anacoreta.
Seriam efeitos exteriores ao viver em deserto, onde até a memória breve do mundo distante fosse já um pecado...
Vergílio Ferreira
sexta-feira, 11 de julho de 2008
Is It Wicked Not To Care
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) sexta-feira, julho 11, 2008
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