um só olhar
pode ser uma voz não dita.
para acumular dores
o mais das vezes
bastou um desamor.
sei: a solidão
ecoa de modo muito silencioso.
sei: muita silenciosidade
pode reciprocar
verdadeiros corpos num amor.
um só silêncio
pode ser nossa voz não dita
ainda nunca dita.
para ecoar um silêncio
bastou gritarmo-nos para cá dentro
num gritar aprofundo.
já silenciar um eco
é missão para uma toda vida:
exige repensação da própria existência.
Ondjaki
domingo, 31 de janeiro de 2010
Spartak!
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quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
Cameron McGill & what army's
A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço?
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta sfinge, tu perene
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.
Ricardo Reis
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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
The Antlers
Quando pela noite chegas dissolvem-se as trevas
e eu partir não quero, porque esta é a noite
que ilumina o dia, canto do silêncio, eco subtil
no discurso do mundo. Quando pela noite chegas
é meu o teu amor, e a morte tarda doce como mel.
Ana Marques Gastão
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sábado, 23 de janeiro de 2010
Lighting Dust
Custou-me dizer tudo aquilo: tinha dificuldade em encontrar as palavras certas. Ela ali estava, com os olhos fechados, deitada no chão com a saia levantada até ao ventre. Tornei a sentir aquela coisa que me vinha pelas costas e a minha mão apertou-lhe a garganta sem que eu mo pudesse impedir; e apareceu; era tão forte que a larguei e quase me pus de pé. Ela já tinha o rosto azulado, mas não se mexia. Deixara-se estrangular sem reagir. Ainda devia respirar. Peguei no revólver de Lou que tinha no bolso e disparei-lhe duas balas no pescoço, quase à queima-roupa; o sangue começou a jorrar aos borbotões, devagar, em golfadas, com um ruído húmido. Dos seus olhos só se via uma linha branca através das pálpebras; ela teve uma espécie de contracção e acho que foi nesse instante que ela morreu. Virei-a para não lhe ver mais a cara e, enquanto estava ainda quente, fiz-lhe o que já lhe fizera no quarto.
Boris Vian
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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
The Poppers
Com rios
com sangue
com chuva
ou orvalho
com sémen
com vinho
com neve
com pranto
os poemas
sempre
são
papel molhado
Mario Benedetti
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sábado, 9 de janeiro de 2010
Kitty Daisy & Lewis
kiss me
like a cab driver
all fury and fumes
consider the meter
its hard click
we’ve crossed into another
borough all heart-stopped
and forgotten our luggage too
Regina Green
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
Chll Pll
Como eu gosto de ti, ninguém o entenderia. Nem a cama esvaída que me obriga a desprender-me do corpo noutras roturas nocturnas e azedas. Nem a solidão taciturna que escorre devagar nos chuviscos flamejantes do amor. Como eu gosto de ti, nem o mundo o aceitaria. As árvores trépidas, os animais ferinos, a cadência dos lagos, mobília sisuda que ganha a morte sobre o couro crestado. Como eu gosto de ti, só a melodia do poente trova. E se a antemanhã sucumbe nas copas das sequóias - ricocheteando como uma bala célere - perfurando como um comboio alucinado - a incerteza dos teus sinais desmancha-se sobre os meus lençóis na loucura do leito. Como eu gosto de ti, só eu sei, de dentro para dentro, como um confim de baús entreabertos às galáxias chamejantes do céu da boca. Como eu gosto de ti, segredando-me da voz o rasto da tua presença, pernoitando-me de corpo fixo e amor esquivo, a temperança das tuas enchentes.
Alice Turvo
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sábado, 2 de janeiro de 2010
Great Lake Swimmers
Olhei o homem e dentro estava ainda
qualquer coisa que da sombra me espreitava.
Era um espelho, como um céu de noite
em que as estrelas são tantas e pesam sobre ti,
e te espiam e, de facto, não te vêem,
ficam no escuro como pedras sem lembranças,
mas estão lá, qual memória da vida,
e tu és um sopro do teu ser longínquo...
Procurei no espelho, e quase lá no fundo
estava outro qualquer que me buscava,
alguém que sofria a sua própria dor,
e eu já não era nada, era só a história
que não se via já atrás do espelho.
Franco Loi
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