Esta noite, um primeiro movimento, uma pulsão,
como se a chuva no pântano jorrasse uma cabeça:
um rebentar de lodo ou um rasgão
que abre a cama dos fetos e a atravessa.
O teu dorso é uma linha firme da costa a nascente
e além das graduais colinas são lançados
braços e pernas. Acaricio a entumescente
província onde cresceu o nosso passado.
Sou o alto reino sobre o teu ombro quedo
e em ti nada o adula ou o ignora.
Conquistar é mentira. Envelheço e concedo
teu litoral semi-independente e agora
dentro dos seus limites meu legado
fica inexoravelmente culminado
Seamus Heaney
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
The Temper Trap
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) sexta-feira, novembro 27, 2009
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
Cold Cave
Bebamos. Porque havemos
de esperar pelas lucernas? O dia
tem a extensão de um dedo. Traz
as taças grandes, meu amor, as coloridas
taças. O filho
de Sémele e de Zeus aos homens
o vinho deu para o esquecimento
de seus males. Enche-as
até transbordarem - uma
parte de vinho para duas de água. E que uma taça
empurre a outra.
Alceu
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) quinta-feira, novembro 26, 2009
terça-feira, 24 de novembro de 2009
a Jigsaw (a Jigsaw & Becky Lee)
(from a song)
Perhaps I was born kneeling,
born coughing on the long winter,
born expecting the kiss of mercy,
born with a passion for quickness
and yet, as things progressed,
I learned early about the stockade
or taken out, the fume of the enema.
By two or three I learned not to kneel,
not to expect, to plant my fires underground
where none but the dolls, perfect and awful,
could be whispered to or laid down to die.
Now that I have written many words,
and let out so many loves, for so many,
and been altogether what I always was—
a woman of excess, of zeal and greed,
I find the effort useless.
Do I not look in the mirror,
these days,
and see a drunken rat avert her eyes?
Do I not feel the hunger so acutely
that I would rather die than look
into its face?
I kneel once more,
in case mercy should come
in the nick of time.
Anne Sexton
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) terça-feira, novembro 24, 2009
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Low
Imaginei muitas vezes que os olhares
sobrevivem ao acto de ver
como se fossem hastes,
trajectos medidos, lanças
numa batalha.
Penso então que dentro de uma sala
há pouco abandonada
esses traços devem ficar
por algum tempo suspensos e cruzados
no equilíbrio do seu desenho
intactos e sobrepostos como os paus
do mikado.
Valerio Magrelli
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) segunda-feira, novembro 23, 2009
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Gotye
Ouves, meu amor, a água que brotou
no côncavo da pedra que a tua mão marcou?
Ouves, meu amor, o passo do veado
correndo no caminho que só por nós pisado?
Entendes, me amor, a voz que fala agora
do tempo que esperou, da lenta e só demora?
Já era onde nós somos a nossa paz presente.
Só nós entrámos nela e agora é que sente.
Alumiam-se as noites, Deméter aparece,
tu sentas-te a meu lado e o trigo reverdece.
Pedro Tamen
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) quinta-feira, novembro 19, 2009
terça-feira, 17 de novembro de 2009
Fool's Gold
Já lentamente sofro a tua água, o sopro
da memória nas colinas.
deste-me um corpo, a casa
onde acordar o vento, e a terra, e a paz
desconhecida.
nesta cave de pele te implorei os dias
o óleo da manhã nas mãos desertas.
a cada instante me devora o gume
embotado da tua
luz sonora.
afasta do meu rosto a tua vã promessa. deixa
que seja brando o sono sem lembrança,
um chão de terra nua.
do teu jardim de chamas me despeço.
António Franco Alexandre
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) terça-feira, novembro 17, 2009
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Kid Loco
I haven't locked the door,
Nor lit the candles,
You don't know, don't care,
That tired I haven't the strength
To decide to go to bed.
Seeing the fields fade in
The sunset murk of pine-needles,
And to know all is lost,
That life is a cursed hell:
I've got drunk
On your voice in the doorway.
I was sure you'd come back.
Anna Akhmatova
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) segunda-feira, novembro 16, 2009
sábado, 14 de novembro de 2009
The Mountain Goats
(Silêncio).
- Estás tão ausente.
- Também tu estás ausente.
- Diz-me porquê.
- Diz-me também tu porquê.
- Isso entristece-me tanto.
- E como pensas que me sinto.
- O mesmo te pergunto eu.
- És tu que me tornas ausente.
- Mas eu estou aqui.
- Eu também, deixa lá!
(Silêncio).
Per Aage Brandt
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) sábado, novembro 14, 2009
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
Friendly Fires
Deveriam ter-se conhecido
em algum ponto morto da história,
nesse país de sonho, navegando
pela mente de Deus ou num poema.
Ela, cheia de flores e pela água,
ela própria uma flor extravagante
cujo aroma desterra a sensatez.
Ele contempla absorto sobre o branco
impoluto da neve como caem
as pétalas vermelhas de outra flor.
Amalia Bautista
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) quinta-feira, novembro 12, 2009
domingo, 8 de novembro de 2009
Ladytron
Este é o meu número:
telefonem-me.
Este é o sítio
onde passo as tardes:
encontrem-me.
Ou não me telefonem
nem me encontrem
mas pensem em mim
enquanto estiverem a viver.
Pedro Mexia
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) domingo, novembro 08, 2009
sábado, 7 de novembro de 2009
The Concretes
Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento.
Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês - pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.
Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.
Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) sábado, novembro 07, 2009
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
Department of Eagles
Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato
Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena
Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo
Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe
David Mourão-Ferreira
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) sexta-feira, novembro 06, 2009
quarta-feira, 4 de novembro de 2009
Noah and the Whale
E eis que a mulher aparece dentro da sombra,
largando o sangue entre as árvores, e é o seu
corpo visível que se transforma e se deixa levar
pela noite, esquecendo que a sua alma está
presa ao homem que a algemou para sempre.
Não é ela que eu vejo, espanta-se o pedreiro.
E as mãos dele enlouquecem até à exaustão.
Uma coisa nada humana sai do tronco de um
sicômoro. É a mulher esvaindo-se na cinza,
uma borboleta esmagada por um cilindro.
Porque era tarde demais e o amor do homem,
tal como as aves, morreu com o esplendor
das últimas uvas.
Jaime Rocha
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) quarta-feira, novembro 04, 2009
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
French Kicks
Livros repousam sobre a mesa,
óculos, um caderno, um lápis:
os instrumentos do escritor que consumiu
o seu tempo a ler, a pensar, a escrever
tentando estruturar algum breve poema
onde entrar, repousar, retirar-se talvez
na ponta final de um dia atribulado...
Muito antes, erigiam-se templos
e até mesmo grandes catedrais:
hoje, quando a noite chega, contentamo-nos
com um abrigo, uma qualquer arcada
onde evitar esse excesso de intempérie
e enganar o frio que nos corrói os ossos.
Àlex Susanna
Publicada por Ricardo de Magalhães à(s) segunda-feira, novembro 02, 2009