segunda-feira, 29 de junho de 2009

Tiguana Bibles



Com lágrimas da noite,
a flor do amor abriu.
Mas cego, em sua luz,
o sol não vence o frio.

No florido jardim desta prisão,
é gelo de ironia a primavera.

Anda ligeiro, não mais repouses, coração,
que a liberdade sofre e chora à nossa espera.




Edmundo De Bettencourt

domingo, 28 de junho de 2009

Sons & Daughters



O que é a magia, perguntas
numa casa às escuras.
O que é o nada, perguntas,
saindo de casa.
E o que é um homem saindo do nada
e regressando sozinho a casa.




Leopoldo María Panero

sábado, 27 de junho de 2009

The Morning Benders



O espelho enche-se com a tua
imagem; e queria tirá-lo da tua
mão, e levá-lo comigo, para
que o teu rosto me acompanhe
onde quer que eu vá.

Mas sem ti, o espelho
fica vazio; e ao olhá-lo, vejo
apenas o lugar onde estiveste, e
os olhos que os meus olhos procuram
quando não sei onde estás.

Por que não fechas os olhos
para que o espelho te prenda, e
outros olhos te possam guardar,
para sempre, sem que tenham de olhar,
no espelho, o rosto que eu procuro?



Nuno Júdice

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Ana Moura



É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.



Eugénio de Andrade

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Linda Martini



As tuas mãos que a tua mãe cortou
para exemplo de uma cidade inteira
o teu nome que os teus irmãos gastaram
dia a dia e que por fim morreu
atravessado na tua própria garganta
as tuas pernas os teus cabelos percorridos
rato após rato tantos anos
durante tanta alegria que não era tua
os teus olhos mortos eles também
na primeira ocasião do teu amante
assim como as palavras ainda fumegando docemente
sobre as pedras de silêncio que lhes atiraram para cima
o teu sexo os teus ombros
tudo finalmente soterrado
para descanso de todos
- mesmo dos que estavam ausentes




António José Forte

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Deerhunter



Ai daquelas marquesas
nas páginas da história reclinadas
Nunca cruzei na rua os olhos com os vossos
à superficíe do tempo
Quem hoje isolará dos dias o vosso sorriso?
Não são vossas as mãos que abrem as janelas
e deixam cair pássaros na rua
dos panos que empregais para limpar o pó
Não repetis o milenário gesto de vir
pela manhã deixar o lixo à porta
Vós que abríeis antes os lençóis da aurora
como as tendas de salomão erguidas
no planalto da nossa admiração
vejo-vos em tardes rubras brilhar
sobre um altivo mar de esquecimento
Ai que foi feito de todas essas grandes marquesas?


Ruy Belo

terça-feira, 23 de junho de 2009

Ryan Adams



Não digas nada. Talvez
Não exista nada, nada,
Nesse reino - que esquecemos -
Das palavras.

Não digas nada. Essa curva
Do teu braço docemente
Sobre a curva dos meus olhos
Deve dizer o que ainda
Felizmente não dissemos.

Não digas nada. Lá fora
A noite corre para onde?
Os homens falam? Existem?
Nada existe. Nada corre.
está tudo vivo e nós mortos.
Está tudo morto e nós vivos.



Alberto Lacerda

sábado, 20 de junho de 2009

João e a Sombra



Descia a tempestade
como quem vai
comprar cigarros ao outro

lado da vida. Lá ia
de mãos nos bolsos de alguma
inclinação. Subia

para os comboios na estação
mais fria, lia

sobretudo nobre
azul e poesia.



José Carlos Soares

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Nick Cave and the Bad Seeds




Num dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até esse outro em que o ubíquo rio
do tempo terreal retorne à fonte
do Eterno, e que se apague no presente,
o ontem, o futuro, o que ora é meu.
Entre a alba e a noite se situa a história
universal. Assim, de noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, a coragem e alegria
para escalar o pico deste dia.




Jorge Luís Borges

terça-feira, 16 de junho de 2009

Eva Cassidy



Não te fies do tempo nem da eternidade,
que as nuvens me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam contra o meu desejo!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!

Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te escuto!

Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anémona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te digo...


Cecília Meireles

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Messer Chups



Saio da cama pela fenda do lençol e
fecho-a sobre ti. Toco o chão ao de
leve, como uma ave pousa na pele
das ondas. Visto-me às escuras - tão

mais discreta a blusa do avesso, a saia
tão distraída nas costuras. Vou
para a cozinha de sapatos na mão e

escrevo-te um bilhete: deixei-te um
beijo sobre a tua almofada antes
de sair. Não preciso assinar.



Maria do Rosário Pedreira

domingo, 14 de junho de 2009

Eagles of Death Metal



procurei dentro de ti o repercutido som do mar
a voz exacta das plantas e um naufrágio
o deslizar das aves, o amor obsessivo pelos espelhos
o rumor latejante dos sonhos, as cores dum astro explodindo
o cume nevado de cada montanha
difíceis rios, os dias

vivi talvez em Roma
no tempo em que ali chegavam os trigos da Sicília e os vinhos raros das
ilhas
a fama remota dos ladrões de Nuoro

todo o meu corpo estremeceu ao mudar de voz
cresci com o rapaz, embora nunca tivéssemos sido irmãos
e quando ficámos adultos para sempre
alguém lhe ofereceu o oficio de viajante

eu morri perto de Veneza
e quando atirava pedras aos pássaros sempre me ia lembrando de ti





Al Berto

sábado, 13 de junho de 2009

Fleet Foxes



Se a minha deusa cedo se atavia,
de ouro crespo ensombrando os tornozelos
e em bela rede os seus louros cabelos
de cem modos ondula ou já desfia,

comparo-a à donzela que saía
da espuma, a pentear os seus, tão belos,
castanhos, ora longos, ora aos elos,
passando o mar na concha em que seguia.

De uma mulher humana inda não são
seu riso, a testa, o gesto, os passos não,
nem de seus olhos uma e outra centelha.

Não ficam neles bosque, rocha, ou mar,
Ninfa em cabelo assim a esvoaçar,
nem tal olhar, nem boca tão vermelha.



Pierre de Ronsard

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Crazy Cavan & The Rhythm Rockers



Foi a mágoa sem fim de te perder
Foi a dor como única razão
Foi tanto ainda querer-te sem querer
E a raiva no lugar do coração

Foi o passado morto na lembrança
E o presente ausente de sentido
De tanto desesperar fazer da esperança
Saudade do futuro não cumprido

Não sei de que me lembro quando esqueço
Agora que recuso o que perdi
Das cinzas do que fomos recomeço
E nunca estive tão perto de ti



Manuela de Freitas

quarta-feira, 10 de junho de 2009

!!! (Chk Chk Chk)



Por parques e praças,
Ruas e travessas,
Tu, meu olhar, caças
A vida. E tropeças.

Uma gargalhada
Vem dum par contente
Guarda-a bem guardada,
Mas caminha em frente.

Surgem-te sorrisos
dum e doutro lado.
Não faças juízos
Rápidos. Cuidado!

Uma face grave
Nada te revela?
Talvez a dor cave,
Só mais tarde, nela.

Num choro, num grito,
Pressentes a dor?
E quedas, aflito.
Segue, por favor!

Segue, bem aberto
Para cada canto!
Olha o desconcerto
Que parece tanto!
Corre, olhar, em roda!
O que te intimida?
A vida? Só toda
Pode amar-se, a vida.



Alberto De Serpa

terça-feira, 9 de junho de 2009

Peter, Bjorn & John



De noite há movimentos para nada procurar:
moeda sobre o tampo numa rotação local,
faces sem saída, cinzas nos cinzeiros.
Vêm habitantes para um esplendor funesto
e a alma fica líquida, dobrada nos sifões,
sob as galerias, por bares subterrâneos.
Há séculos nocturnos em que as moedas giram
assim entre conversas e qualidades mortas.
Nada se procura quando não existe encontro
- e as cidades brilham nas zonas terminais,
às luzes amarelas. É preciso haver um mito
para esmerilar os restos, as areias, os pós de ouro.




Carlos Poças Falcão

The Chemical Brothers



Era um pássaro alto como um mapa
e que devorava o azul
como nós devoramos o nosso amor.

Era a sombra de uma mão sozinha
num espaço impossivelmente vasto
perdido na sua própria extensão.

Era a chegada de uma muito longa viagem
diante de uma porta de sal
dentro de um pequeno diamante.

Era um arranha-céus
regressado do fundo do mar.

Era um mar em forma de serpente
dentro da sombra de um lírio.

Era a areia e o vento
como escravos
atados por dentro ao azul do luar.




Cruzeiro Seixas

sábado, 6 de junho de 2009

First Aid Kit



eu sou as personagens que tu representas
as falas que inventas
as histórias que gostarias de ter vivido
os sentimentos que sabes ter fingido
a cartilha das tuas opções
o chorrilho das tuas razões
as viagens que nunca fizeste
o grande amor que não tiveste
o talento que não é o teu
o saber que tens e que é o meu

a tua vida é o maior livro em que escrevo
nele não ficará registado tudo aquilo que não fiz
tudo aquilo que quero escrever mas de verdade temo



Carla Ribeiro

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Muddy Waters



Brincávamos na areia. Os nossos passos
eram naqueles dias a cadência
a música do sol

Ó estilhaços do tempo ainda vivos
projectados num filme que regressa
ao ritmo das ondas
e fica ao nosso alcance, até ao fim
da tarde pouco a pouco devorada
pla sombra desses toldos

dunas esquivas e pinhais
tão perto do que foi a minha infância
entre o riso dos primos e o mar
amigo de Brandão de António Nobre
batido pla nortada

Brincávamos na areia. como eu queria
roubar de novo a luz a essas praias
jogar ao prego, adivinhar
nas vozes infantis algum presságio
do céu ou do inferno - uma certeza
para sempre fiel a esse mundo


Fernando Pinto do Amaral

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Lily Allen



Possivelmente, todos nós, nas terras da Europa, nos parecemos. Temos uma sensibilidade comum perante a vida e as suas mudanças. O que mais nos agrada é inventariar as coisas do progresso para não nos iludirmos com ele. Mas, acima de tudo, amamos tudo aquilo que afinal não está na agenda da celebridade. Amamos os quatro favores da pobreza, que são: o humor, o vínculo ao quotidiano, o respeito pela morte e por tudo o que a pode atrasar ou activar. E amamos os caminhos da terra que percorremos sem descanso, mesmo quando somos obrigados a um ofício sedentário.




Agustina Bessa-Luís

quarta-feira, 3 de junho de 2009

The Greatest Pics Vol. II





Fotografias de Joaquim Pedro Correia

Blá Blá / 5 . 6 a 4 . 7


terça-feira, 2 de junho de 2009

Charlotte Gainsbourg



Se tivesse ficado
longe, quando no princípio
senti a tua falta,
podia ter-te esquecido
agora, neste momento.



Isumi Shikibu

segunda-feira, 1 de junho de 2009

White Lies



Quando ouço ao telefone a voz que brinca
e canta, sem saber, os dias novos,
pouco me importam tempo, espaço, luas,
ou maneiras sequer de ser humano.
Vagueio pelo ar, e arranco estrelas
ao cenário sem fim do universo;
e faço pobres contas aos cabelos
depenados no chão, verso após verso.
Nada é real, senão o meu desejo,
nem sei de lei nenhuma que não dobre
a dura mansidão da tua boca;
inventou-nos um deus, para que seja
veloz o lume na manhã sem nome,
e chama viva a voz que nos consome.



António Franco Alexandre

+++