quinta-feira, 30 de abril de 2009

Los Campesinos!



Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um aponta-
mento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.




Ingeborg Bachmann

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Johnny Cash



Trabalho e trabalho
para dar à luz um pai
na minha solidão de depauperado
arado que nada sulca
porque como um comboio a que faltaram carris
prévios ao meu arado são seus sulcos.

Sou um filho circular. Como um signo
zodiacal sou um filho circular, requer o que faço
aquilo em que me movo
que é aquilo em que me movo
e que faço e como fazê-lo
se não tenho já em que me mova? O que faço
é o que me fez.

Sou comboio e arado e um rodado
sem discos. Sem paralelo em círculos
rotunda tristeza propago
de vertiginosa incubação de vórtices
que ajudo a solidificar: outra vez a sólida
solidão: é fácil a primeira imagem do comboio:

insta à compaixão. E são pesados os bois
circulares que o meu arado
entontece, e vão o rodado
sem discos. Quanto pesarão
bois entontecidos? Como ser pai
quando se é filho?


Daniel Jonas

sexta-feira, 24 de abril de 2009

BlitzenTrapper



Entre o unicórnio e tu

O espaço de um grito

Cega procura

Do teu corpo

No interior de ti

No meu amor

Espaço entre unicórnio

E eu



Isabel Meyrelles

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Stephanie Dosen



Deixemo-nos agora, meu amor: mas não
seja amargo desastre. Houve no passado,
muito luar e mais e auto-compaixão:
acabemos com isso: já como nunca é dado
agora ao sol audaz atravessar o céu
e nunca aos corações deram mais ganas
de serem livres contra mundos, florestas; eu
e tu não os detemos, nós somos as praganas
a ver o grão partir e é para outro uso.

E tem-se pena. Sempre se tem alguma.
Mas não demos às vidas laço escuso,
como barcos ao vento, de luz molhada a crista,
desferram do estuário e cada um lá ruma:
separam-se acenando e perdem-se de vista.


Philip Larkin

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Cazino



Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.



Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.


Ana Salomé

domingo, 19 de abril de 2009

Sparklehorse



Não sinto nada ao domingo. Nada me comove.
Nada me demove de não sentir.
Resisto ao apelo dos grãos do café
entre magotes de pessoas,
ao passeio de carro, devagar, para gozar o panorama,
como devem ser os passeios ao domingo.
Não há um ritmo que me incendeie,
uma montra luminosa que me ilumine.
Fico por casa, na serenidade do jornal de domingo,
quieto quieto. Era capaz de passar o dia
abraçado a ele, página após página.
Nacional, local, mundo.
É domingo no mundo.
Em Paris sobe-se uma vez mais à torre Eiffel
de encontro ao céu de domingo,
que neste dia não haverá de ser diferente
do céu que cobre o jardim de terra
plantado junto ao museu do Louvre.
Nem uma praia das Caraíbas escapa ao domingo:
recebe os rapazes e raparigas lentos e torpes
mais tarde do que é habitual: é domingo,
e só muito tarde dão descanso à praia,
cheios de areia dominical nos pensamentos.
Abstenho-me de sentir ao domingo,
apesar de ser domingo no mundo.


joão alexandre lopes

sábado, 18 de abril de 2009

The Shins



Depois do que te disse
descansei

escrevo-te sem endereço
no reverso do que fiz

não escolho as ruas onde moras

paro no verso
nunca atravesso

fecho-me na caixa do correio
à espera que me escrevas

melhor é acampar
no dedo direito deste magro braço d'água
cingido à complicação elementar
de estar vivo.


Boaventura de Sousa

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Ha Ha Tonka



Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro.

Vergílio Ferreira

terça-feira, 14 de abril de 2009

Sparrow House



Este homem não tem nada que fazer

sabe dizer poucas palavras

leva nos seus olhos colinas e sestas na relva

Vai em direcção a algum lugar com um pacote debaixo do braço

em busca de alguém que lhe diga "entre"

depois de ter engolido o pó

e o estridente apito dos comboios

depois de ter visto a lista de empregos nos jornais

Não deseja mais do que descansar um por um os seus poros

Há tanta solidão a bordo de um homem

quando apalpa os seus bolsos ou conta os frangos assados nas vitrinas

ou na rua os cavalinhos que fazem a chuva feliz

E dentro da tibieza as bocas sorriem à meia-noite

algumas se beijam e entesouram desejos

outras mastigam chicletes e brincam com as chaves

Crescem os bosques de ídolos

e o caçador se faz cobrar pela sua melhor peça



Mario Rivero

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Sia



Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo, de repente
Hei-de morrer de amar mais do que pude.


Vinicius de Morais

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Alela Diane



(..)
La luna apparve, tonda, e ci distrasse
(nella finestra, in cima alla magnolia),
stavo per dire: "Non sei tu, l'amore.
Io voglio solo prenderti, tenerti
per una eternità che non misuro".
Corsero i giorni, la luna riapparve
(nel vento lieve, sopra la magnolia)
e mi dicesti: "Partirò domani.",
con la voce di chi non vuol ferire,
intanto caccia nel ventre un coltello.


Elio Pecora

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Frida Hyvonen



Eu cantarei de amor tão docemente
que, ainda extinta a voz, dela perdure
o veio breve donde transpirou
outrora o canto aceso e seus silêncios.
Serão então do exílio as horas frouxas
derramadas qual ácido no rosto
do amante. mas nada foi em vão.
Que os lábios tremerão de puro amor
e a pele - como a serpente à melodia
rende sua homenagem, cativada -
contra o dia se indisciplinará,
erguida sobre si, ao arrepio
de leis acumuladas contra nós,
seus ecos contrapondo o tempo frio.


António Manuel Pires Cabral

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Tenacious D



Foste a chama da minha razão alucinada. Não havia mais espaço onde apoiar os meus símbolos. Amar-te-ei tanto, dizias, e aprendemos a importância do café do pequeno almoço enquanto eu saía para roubar laranjas para ti. Devoramos o mundo, essa besta surdo-muda, fazendo-nos menos surdos, menos mudos, obedecendo a uma lei pela qual se se procura e destrói energia esta encontrar-se-á em beleza transformada. Eu não sabia o que acontece quando um pêndulo se detém porque nunca tinha visto um detido. Choravas e chovia. Vi coisas em teus olhos que ninguém viu, apertavas-me a mão procurando exprimir aquele fruto roubado a mim; a ninguém; sumo transgénico de chuva em lágrimas. A verdade às vezes é tão verdade que se torna 100 % cristalina, e assim inominável.


Agustín Fernandéz Mallo

sábado, 4 de abril de 2009

Papercutz



A minha verdade relativa é esta: não sei se é maduro o poeta em mim com quem converso ou se amadureceu a poesia que lhe peço. Posto isto, escrevo para dentro algum olhar. Sei que está vivo e respira. Peço a retina desse milagre, o mundo fora de mim que ele divisa. Oiço, dali, uma saudade que borbulha, as mãos que são dela e que marulham. Subo à traqueia um pouco do que de dentro deste ar é puro. O amor, por exemplo, que sinto, a vontade que é deitar-me sobre o chão do mundo, vestir-me de veludo e com a candura das estrelas. Assobio uma canção de entre os lábios, um perfume imóvel a visitar essa harmonia. Danço com as notas uma viagem melódica, uma letra vestida na sua nudez, rumo. Para onde não sei. Mas rumo, como se evoluísse para um horizonte líquido, para um acontecimento feliz. Oiço as vozes das palavras chegarem-me com delicadeza, alvas, profundas, flutuantes e azuis.


Eduardo White

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Isobel Campbell



nascer como nasci não é nascer,

é dobrar a vida,

não se rasga a vida para nascer,

antecipa-se o fim que a vida é um dolo



nascer nas horas da lua

não é nascer

nascer como nascer é transportar

as viscosidades



havia uma partida

e uma estátua havia a lua



havia coisas que nos fazem nascer como não nascer

redobrar o amaro



ver assim a vida ver assim o mundo

e as primeiras palavras serem escritas



como nascer é partir para a Lua

como ver a luz é ter na luz a versão

dos avessos



Norberto do Vale Cardoso

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