sábado, 28 de fevereiro de 2009

Tobias Froberg



(...)
4 de Janeiro.

Hoje aconteceu-me uma coisa estranha. Durante três dias não arrumei o escritório; como o meu marido foi passear esta tarde, entrei lá para o limpar. Em frente da estante, sobre a qual está uma jarra de pé alto onde pus um narciso, estava caída uma chave. A coisa não tinha talvez nenhuma importância. Contudo, não posso imaginar que meu marido tenha sido, sem nenhum motivo, tão negligente que deixasse esta chave no chão, porque é muito cuidadoso. E de resto, desde que há alguns anos redige o seu diário, não deixou cair a chave uma única vez. Há muitissimo tempo, naturalmente, que sei que ele escreve um diário, que o fecha à chave na gaveta da mesinha, enfim, que esconde esta chave umas vezes entre os numerosos livros da estante e outras debaixo do tapete. Contudo, faço uma distinção entre o que posso e o que não devo saber.
(...)Porque deixou então hoje a chave caída no chão? O que provocou no seu espírito esta mudança? Julgará útil fazer com que eu leia este diário? Terá pensado que se me dissesse abertamente: «lê-o», eu provavelmente não o leria? Não quis então dizer-me: «Se tens vontade de o ler, lê-o às escondidas! A chave está ali.» Não saberá ele que desde há muito tempo conheço os esconderijos da sua chave? Não, não deve ser isso, talvez tenha querido dizer: «Admito de hoje em diante que leias este diário às escondidas; admito-o, mas farei de conta que não o sei.»



Junichiro Tanizaki, A Confissão Impúdica

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Plushgun



Os meus amantes nunca

foram belos,

magros, de veias grossas,

esculpidos em osso,

dramáticos, ternamente trágicos

até ao sorriso.

Os meus amantes eram difíceis,

resistiam de modo selvagem

para logo se entregarem,

resignados e impossíveis,

com a altivez domesticada,

a cabeça em baixo

olhando o meu sexo,

destruídos pelo desejo

mais poderoso que o espírito.

Tristes.

Nenhum conquistou

os meus demónios,

abriu as minha folhagem débil

e entrou

para não sair.

Nenhum me fez fanática

do seu sexo,

me desviou a luxúria

para o centro da sua boca,

concentrou a surpresa

nos seus passos arrastados,

o prazer, no som

da sua voz categórica,

na gravidez dos seus olhos.

Nenhum me fez habituar-me aos seus costumes,

me criou a necessidade de o necessitar,

e por fim se ofereceu a ministrar-me

a dose de si mesmo que

me faria depender-lhe, nem

tampouco me instalou

um tumor benigno

no útero.

E agora tudo é diferente,

tudo é diferente.

E já não estou

Só.


Eva Vaz

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Puressence




Porque é que os portugueses são tristes? Porque estão perto da verdade. Quem tiver lido alguns livros, deixados por pessoas inteligentes desde o princípio da escrita, sabe que a vida é sempre triste. O homem vive muito sujeito. Está sujeito ao seu tempo, à sua condição e ao seu meio de uma maneira tal que quase nada fica para ele poder fazer como quer. Para se afirmar, como agora se diz, tão mal.
Sobre nós mandam tanto a saúde e o dinheiro que temos, o sítio onde nascemos, o sangue que herdámos, os hábitos que aprendemos, a raça, a idade que temos, o feitio, a disposição, a cara e o corpo com que nascemos, as verdades que achamos; mandam tanto em nós estas coisas que nos dão que ficamos com pouco mais do que a vontade. A vontade e um coração acordado e estúpido, que pede como se tudo pudéssemos. Um coração cego e estúpido, que não vê que não podemos quase nada.

Aí está a razão da nossa tristeza permanente. Cada homem tem o corpo de um homem e o coração de um deus. E na diferença entre aquilo que sentimos e aquilo que acontece, entre o que pede o coração e não pode a vida, que muito cedo encontramos o hábito da tristeza. Habituamo-nos a amar sem nos sentirmos amados e a esse sentimento, cortado por surpresas curtas, passamos a chamar amor. E com verdade. No mundo das ausências, onde a tristeza vem de sabermos muito bem o que nos falta, a nós e àqueles que nos rodeiam, a bondade, que nos torna vulneráveis aos sofrimentos daqueles que nos acompanham e nos faz sofrer duas vezes mais do que se estivéssemos sozinhos, é o preço que pagamos por não sermos amargos. É graças à bondade que estamos tristes acompanhados. Há uma última doçura em sermos tristes num mundo triste. Igual a nós.


Miguel Esteves Cardoso

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Mallu Magalhães



Hoje é um dia qualquer. As coisas acontecem sempre
num dia qualquer, nós é que referenciamos o dia
em que as coisas aconteceram. O 14 de Julho, o 25 de Abril,
"faz hoje quinze anos que", "completam-se dois séculos amanhã",
e todos os dias acontecem coisas importantes para cada um de nós,
só que há dias em que as coisas que acontecem
são importantes para todos. Então o dia
deixa de ser um dia qualquer e, à posteriori, é quase sempre,
e para sempre, um dia de referência. Foi
num dia qualquer que te conheci. E, num dia qualquer,
comecei a amar-te. E amo-te. Todos os dias. Até qualquer dia.
O amor, a dor, a gente, toda a gente,
acaba, inevitavelmente, num dia qualquer.


Joaquim Pessoa

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Jean-Baptiste Monge





The Magic Numbers



Hoje apetece-me sentir com as tuas palavras
Para não ser bem eu mas o que vai de mim a ti
Ainda que nunca saibam a ti
E que é só o que deve existir

Nem sempre consigo ouvir o que nunca dizes é certo
Dentro de mim tropeço-me
Nunca sinto o que digo
Nem sei se sei sentir
As minhas palavras existem-me demasiado
São o que és.


Ana França

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Marcelo Camelo



A noite está quente, a noite é longa, a noite é magnífica para ouvir histórias, disse o homem que veio sentar-se ao meu lado no muro do pedestal da estátua de D. José. Estava realmente uma noite magnífica, de lua cheia, quente e mole, com alguma coisa de sensual e de mágico, na praça quase não havia carros, a cidade estava como que parada, as pessoas deviam ter-se demorado nas praias e só voltariam mais tarde, o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento, eu olhei para o meu interlocutor, era um vagabundo magro com uns sapatos de ténis e uma camisola amarela, tinha a barba comprida e era quase careca, devia ter a minha idade ou pouco mais, ele olhou para mim e levantou o braço num gesto teatral. Esta é a lua dos poetas, disse, dos poetas e dos contistas, esta é uma noite ideal para ouvir histórias, e para as contar também, não quer ouvir uma história? E porque é que teria de ouvir uma história?, disse eu, não vejo a razão. A razão é simples, respondeu ele, porque é uma noite de lua cheia e porque você está aqui sozinho a olhar para o rio, a sua alma está solitária e saudosa, e uma história podia dar-lhe alegria. Tive um dia cheio de histórias, disse eu, acho que não preciso de mais. O homem cruzou as pernas e apoiou o queixo nas mãos com ar meditabundo e disse: precisamos sempre de uma história mesmo parecendo que não.


Antonio Tabucchi

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Emiliana Torrini



Sento-me num café e fico uma hora inteira a ver passar na rua as trinta mil pessoas da cidade. Convencidas, vencidas, alegres e tristes, inquietas, calmas, inseguras, deslizam como imagens num écran. Naquele momento, dir-se-ia que cada um concentra em si o destino do mundo. E, afinal, um segundo depois, não fica no seu caminho o mais leve sinal de tanta significação que parecia ter. Representou apenas um papel semelhante ao daqueles protagonistas de tragédias e comédias contadas num jornal que a criada amarrota, mete no fogão e queima.


Miguel Torga

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

The Postmarks



When I go away from you
The world beats dead
Like a slackened drum.
I call out for you against the jutted stars
And shout into the ridges of the wind.
Streets coming fast,
One after the other,
Wedge you away from me,
And the lamps of the city prick my eyes
So that I can no longer see your face.
Why should I leave you,
To wound myself upon the sharp edges of the night?


Amy Lowell

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Natalie Merchant



o sol nascia no meu peito

iluminando-me a face,

lembras-te?



podia(s) senti-lo a tocar-me a pele.



podia(s) sabê-lo

no sorriso mais livre

que jamais me aconteceu.




Sílvia Chueire

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Mojave 3



your life is your life.
don’t let it be clubbed into dank submission.
be on the watch.
there are ways out.
there is a light somewhere.
it may not be much light but
it beats the darkness.
be on the watch.
the gods will offer you chances.
know them.
take them.
you can’t beat death but
you can beat death in life, sometimes.
and the more often you learn to do it,
the more light there will be.
your life is your life.
know it while you have it.
you are marvelous.
the gods wait to delight
in you.


Charles Bukowski

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Bruno Aleixo / Aristóteles



O homem magnânimo deseja ocupar-se de poucas coisas, e estas têm de ser verdadeiramente grandes aos seus próprios olhos, e não porque outros assim pensem. Para o homem dotado de uma alma grande, a opinião solitária de um único homem bom conta mais que a opinião de uma multidão. Foi o que disse Antífon, após a sua condenação, quando Agatão o cumprimentou pelo brilho de sua autodefesa.

Aristóteles

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Beach House



para dizer

que o céu é azul

que os corpos se movem no espaço

que doce é a tua boca

e amargo o teu desprezo

para dizer tudo isto

bastam-me os sentidos

as palavras

não dizem o mundo

dizem o desejo

de dizer o mundo



Luís Ene

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

És um Palhaço


És um Palhaço, é um insulto ou não? Depende do ponto de vista. Mas não é crime. Mesmo que a expressão tenha sentidos mais mutáveis que um camaleão. Pelo menos assim o entendeu, em 19-12-2007, o Tribunal da Relação da Porto.

Joaquim Pedro Correia traz até ao Plano B, de 13 de Fevereiro a 5 de Março, uma série notável de 27 fotografias de Palhaços que evidenciam com excepcional elegância visual não só que o mesmo sapato não serve em todos os pés mas também que o gigante pode-se vestir de pigmeu e vice-versa e que se assumem como uma girândola de contrastes entre quem ri e quem faz rir, num imaginário de afectos que nos convence em absoluto que se os palhaços fazem rir também transcendem essa condição tornando-se verdadeiramente lugares que habitam para sempre algumas das nossas mais deslumbradas memórias de tempos felizes.

És um palhaço proporciona-nos uma espécie de viagem aos tempos do tempo que nos recorda com a ternura própria da saudade, que os tempos mudam e nós mudamos com eles. Mas que a memória é sempre melhor quando é servida quente a olhos que brilham.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Brother Ali / Barack Obama



Recostado na sua cadeira, uma cadeira larga e quebrada

E polvilhada com cinzas,

O papá passa os canais, toma outro

Cálice de Seagrams, simples, e pergunta

O que fazer comigo, um rapaz novo e verde

Que nem considera a

Falta de sentido do mundo, desde

Que as coisas se me tornaram fáceis.

Fixo os olhos na sua cara, um olhar

Que lhe afasta a testa;

Estou certo que ele não tem consciência dos seus

Negros olhos de água, estes que

Balançam em diferentes direcções,

E dos seus lentos e indesejados espasmos

Que demoram a desaparecer.

Oiço, aceno abertamente até tocar na sua pálida,

Camisola bege, gritando,

Gritando nos seus ouvidos, pendurados

Com lóbulos pesados; mas ele está a contar

A sua piada, e então pergunto-lhe por que

Parece tão infeliz, ao que me responde….

Mas eu não quero mais a porcaria da resposta, porque

Passou todo o tempo, e por baixo da

Minha cadeira eu tiro o espelho que guardei;

Eu rio-me, rio-me à gargalhada, o sangue escorre

Da sua cara até à minha, e cresce

Um pequeno lugar no meu cérebro, algo

Que deverá ser extirpado, como se fosse um

Caroço de melancia, com os

Dois dedos.

O papá toma outro cálice, simples,

Repara na pequena mancha de âmbar

Nos seus calções, igual à que eu tenho nos meus, e

Faz-me cheirar do seu cheiro, e este vem

Apenas de mim; ele passa os canais, recita um poema antigo

Que escreveu antes de a sua mãe falecer,

Levanta-se, grita, e pede

Um abraço, assim que eu encolho, com os meus

Braços mal conseguindo dar a volta

ao seu grosso e oleoso pescoço, e às suas costas largas; porque

Eu vejo a minha cara emoldurada na

Armação preta dos óculos do papá,

E descubro que ele também se ri.



Barack Obama

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Nunca conseguiu viver ...

Nunca conseguiu viver longe do mar. A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo — só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos, o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre por onde andou, obsessivamente — mas nunca chegou a encontrá-lo. (...)


Al Berto, O Anjo Mudo

domingo, 8 de fevereiro de 2009

M. Ward



A mulher não esmorece perante

a literária lua.

Não levanta um medo para os flancos

da pouca noite.

A claridade, a claridade existe para além

dos escombros do filho que não está.

O corpo é uma praça iluminada

quando caminha com existência

visível.

A lua deita-se com esta mulher diária.

A mulher não adoece perante

a memória lúcida e cega.

Onde a areia branca?



Rui Dias Simão

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Scott Matthew



Estive à conversa com o teu verdugo.

Um homem pulcro, amável.

Disse-me que, por ser eu,

podia escolher o modo de partires.

Os esquimós, explicou, quando ficam velhos

Perdem-se pelos caminhos

para que o urso os coma.

Outros preferem terapia intensiva,

médicos correndo ao redor, tubos, oxigénio

e inclusive um pároco aos pés da cama

fazendo sinais de hospedeira de bordo.

"É inevitável?", perguntei.

"Não devia ter vindo até aqui com essa chuva",

Respondeu-me.

Depois falou do ciclo dos homens, dos

aniversários, da dialéctica estéril do futebol, da infância

e os seus estrondos imensos cheirando a pneus.

"No entanto", disse sorrindo,

"as ambulâncias acabam devorando tudo".

Então assinei os papéis

e perguntei-lhe quando aconteceria...

Agora!, disse. Agora

tenho nos braços o teu vasilhame regressável.

E decido não chorar,

não fazer barulho,

para que lá no alto

possas achar

a mão erguida do teu falcoeiro.


Fabián Casas

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Early Day Miners



Na primeira noite, eles se aproximam
e colhem uma flor de nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem,
pisam as flores, matam nosso cão.
E não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles,
entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua,
e, conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.

E porque não dissemos nada,
já não podemos dizer nada.



Maiakovski

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Hello Saferide



Arranja-me uns versos para o verão.
Coisas de areia, de memória
e sem futuro. Passos das tuas coisas
em volta, a luz perdendo
que guia o pescador, o turista
e o amante em aventuras com regresso
aos quartos onde repousa para o fim
a escassa vida.


Escreve como quem descreve quase
o fim do amor, da casa, do caminho
o teu ao meio-dia de Agosto
quase inteiro de sol
e outras poentes alegrias.



António Manuel Azevedo

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

The Pains Of Being Pure At Heart



Os homens sempre tiveram muita necessidade de se amarem uns aos outros. Construíram esse amor como construíram pontes. Foram necessárias abóbadas sonoras para tornar a multidão mais presente para a multidão; e palavras incompreensíveis para que se cantasse com todo o coração; e uma música bem ritmada, para que todos pudessem dizer as mesmas coisas ao mesmo tempo.
(...) Só querer relacionar-se com aqueles que se aprovam em tudo é quimérico, e é o próprio fanatismo.

Alain

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Nouvelle Vague



descalço-me de sombras para chegar a ti

as linhas do meu rosto são claríssimas

nelas não vês o velho, a criança, o adulto

vês apenas o traço comum

que é onde eu procuro a tua mão

na transparência da minha palavra inteira


Vasco Gato

Balthus



domingo, 1 de fevereiro de 2009

Sir Richard Bishop / D.H. Lawrence





Suavemente, na penumbra, uma mulher canta para mim;
Fazendo-me voltar e descer o panorama dos anos, até que vejo
uma criança sentada debaixo do piano, na explosão do prurido das
cordas
E pressionando os pequenos, suspensos pés de uma mãe que sorri
enquanto ela canta.

Apesar de mim, a insidiosa mestria da canção
Atraiçoa-me fazendo-me voltar, até que o meu coração chora para
pertencer
Ao antigo entardecer dos domingos em casa, com o inverno lá fora
E hinos na aconchegada sala de visitas, o tinido do piano o nosso guia.

Por isso agora é em vão que a cantora irrompe em clamor
Com o appassionato do grandioso piano negro. A magia
Dos dias infantis está em mim, a minha masculinidade
É desencorajada no fluxo da lembrança, choro como uma criança
pelo passado.


D.H. Lawrence

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