sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Quase Perfeito



Se um beijo é quase perfeito
Perdidos num rio sem leito
Que dirá se o tempo nos der
O tempo a que temos direito

Se um dia um anjo fizer
A seta bater-te no peito
Se um dia o diabo quiser
Faremos o crime perfeito

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

ney matogrosso / António Lobo Antunes



Se eu não te amar mais me
Caia o mar nos ombros
Me caia
Este silêncio pelos ossos dentro
Me cegue os olhos esta sombra
Me cerre
Esta noite num escuro mais profundo
Do que a chuva de ti de mãos tão leves
A figueira do meu sangue se emudeça
De pássaros à espera dos teus passos
De outra voz por sobre a minha
Morta
E as ruas do teu corpo eu desaprenda
Como desaprendi os dedos que me tocam
E se eu não te amar mais me caia a casa
De costa no teu peito como o vento



António Lobo Antunes

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A Little At A Time



I start looking back for the things I used to live by
If only I could remember them
Even one of them
You can't lose it all at once, can you really
Cause brother I've been trying
These days even stars fall only a little at a time
Maybe if I send back the blues her broken heart
She will send back mine
Maybe if I send back the blues her broken heart
She will send back mine
A little at a time
...

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Estava eu sentado, perto do mar...

Estava eu sentado, perto do mar, a ouvir com pouca atenção um amigo meu que falava arrebatadamente de um assunto qualquer, que me era apenas fastidioso. Sem ter consciência disso, pus-me a olhar para uma pequena quantidade de areia que entretanto apanhara com a mão; de súbito vi a beleza requintada de cada um daqueles pequenos grãos; apercebia-me de que cada pequena partícula, em vez de ser desinteressante, era feito de acordo com um padrão geométrico perfeito, com ângulos bem definidos, cada um deles dardejando uma luz intensa; cada um daqueles pequenos cristais tinha o brilho de um arco-íris... Os raios atravessavam-se uns aos outros, constituindo pequenos padrões, duma beleza tal que me deixava sem respiração... Foi então que, subitamente, a minha consciência como que se iluminou por dentro e percebi, duma forma viva, que todo o universo é feito de partículas de material, partículas que por mais desinteressantes ou desprovidas de vida que possam parecer, nunca deixam de estar carregadas daquela beleza intensa e vital. Durante um segundo ou dois, o mundo pareceu-me uma chama de glória. E uma vez extinta essa chama, ficou-me qualquer coisa que junca mais esqueci que me faz pensar constantemente na beleza que encerra cada um dos mais ínfimos fragmentos de matéria à nossa volta.


Aldous Huxley

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Far away



Far away, once so close
But now you're far away
You're still here with me
But not like yesterday, so far
Far away, I hear you breathe
But you're so far away
Once so colourful
But now all turns to grey, so far
It's oh so strange
When centimetres feels like miles
Seconds like hours
Now it's true love has died
No more roads left to try, far away
Far away, long ago
When love was here to stay
Now it's gone
It doesn't matter what we say, so far
Every word is like a knife
But the silence cuts you twice

domingo, 26 de outubro de 2008

Leixões Sport Club (o Meu)






A CIDADE DE MATOSINHOS
TÃO CHEIA DE PERGAMINHOS
TEM ORGULHO E TEM VALOR
NO SEU GRUPO TÃO VAREIRO
NA CIDADE ÉS O PRIMEIRO
E PARA NÓS SEMPRE O MELHOR

LEIXÕES, LEIXÕES, LEIXÕES

sábado, 25 de outubro de 2008

Oasis / Ovídio



Nem todas as mulheres experimentam os mesmos sentimentos. Encontrareis mil almas com mil maneiras diferentes. Para as conquistar, empregai mil maneiras. A mesma terra não produz todas as coisas: tal convém à vinha, tal à oliveira; aqui despontarão cereais em abundância. Há nos corações tantos caracteres diferentes, quantos rostos há no mundo. O homem prudente acomodar-se-á a estes inumeráveis caracteres; novo Proteu, tão depressa se diluirá em ondas fluidas para logo ser um leão, uma árvore, um javali de eriçadas cerdas. Os peixes apanham-se aqui com o arpão, ali com o anzol, acolá com as redes puxadas pela corda estendida. E o mesmo método não convirá a todas as idades: uma corça velha descobrirá a armadilha de mais longe; se te mostrares experiente junto de uma noviça, demasiado petulante junto de uma recatada, ela desconfiará que a vais tornar infeliz. Assim é que a mulher que às vezes teme entregar-se a um homem honesto, caiu vergonhosamente nos braços de alguém que a não merece.

Ovídio

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Deixas Em Mim Tanto de Ti



Leva o medo,
abraça os gestos imperfeitos
de noites não dormidas,
de quimeras tão azuis
como azul é o olhar
que não toco à instantes.

Resgata fantasmas,
aqueles sim,
esses que povoam
o espaço entre nós
e impedem o sôfrego desejo
de impulsos controlados
na perfeição do segredo.

Leva o medo
e deixa-me a luz
para nela me banhar
em noite de lua cheia
cheirando a maresia.

Depois…
depois segura entre mãos,
suavemente,
o doce amor
que te deixei…

… solene.


Rosa Maria Anselmo

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Alex Dukal



quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Slow Show



Standing at the punch table swallowing punch
can’t pay attention to the sound of anyone
a little more stupid, a little more scared
every minute more unprepared

I made a mistake in my life today
everything I love gets lost in drawers
I want to start over, I want to be winning
way out of sync from the beginning

I wanna hurry home to you
put on a slow, dumb show for you
and crack you up
so you can put a blue ribbon on my brain
god I’m very, very frightening
I’ll overdo it

Looking for somewhere to stand and stay
I leaned on the wall and the wall leaned away
Can I get a minute of not being nervous
and not thinking of my dick
My leg is sparkles, my leg is pins
I better get my shit together, better gather my shit in
You could drive a car through my head in five minutes
from one side of it to the other

I wanna hurry home to you
put on a slow, dumb show for you
and crack you up
so you can put a blue ribbon on my brain
god I’m very, very frightening
I’ll overdo it

You know I dreamed about you
for twenty-nine years before I saw you
You know I dreamed about you
I missed you for
for twenty-nine years

You know I dreamed about you
for twenty-nine years before I saw you
You know I dreamed about you
I missed you for
for twenty-nine years

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Rescue Me



Erros meus a que chamarei virtude,
Por bem vos quero, e morro despedido
Sem amor, sem saúde, o chão perdido,
Erros meus a que chamarei virtude.

A terra cultivei, amargo e rude,
No sonho de melhor a ter servido;
Para ilusão de um palmo de comprido,
A terra cultivei, amargo e rude.

E o amor? A saúde? Eis os dois Lagos
Onde os olhos me ficam debruçados
— Azul e roxo, rasos de água os Lagos.

Mas direis, erros meus, ainda amores?
— São bonitos os dias acabados
Quando ao poente o Sol desfolha flores.

Afonso Duarte

domingo, 19 de outubro de 2008

Araki




















sábado, 18 de outubro de 2008

So You'll Aim Toward The Sky



So you'll aim toward the sky
And you'll rise high today
Fly away
Far away
Far from pain

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Alla Polacca / Walt Whitman



Sometimes with one I love I fill myself with rage for fear I effuse
unreturn'd love,
But now I think there is no unreturn'd love, the pay is certain one
way or another,
(I loved a certain person ardently and my love was not return'd,
Yet out of that I have written these songs.)


Walt Whitman

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Felicidade Eterna

Antigamente todos os contos para crianças terminavam com a mesma frase, e foram felizes para sempre, isto depois de o Príncipe casar com a Princesa e de terem muitos filhos. Na vida, é claro, nenhum enredo remata assim. As Princesas casam com os guarda-costas, casam com os trapezistas, a vida continua, e os dois são infelizes até que se separam. Anos mais tarde, como todos nós, morrem. Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre.

José Eduardo Agualusa

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Fanfare Ciocarlia / Cesário Verde




Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura.
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez não o suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.


Cesário Verde

domingo, 12 de outubro de 2008

O Portugal de ...



“É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de se fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos”.


Miguel Esteves Cardoso

sábado, 11 de outubro de 2008

Diz que fui por aí



A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só


António Ramos Rosa

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Falling From Grace



If I could tear my heart
And keep it miles apart
From love of beast or man
And never give a damn
If I could learn to lie
And never show my pride
I'd be just like the rest
Be someone I detest

I'm always looking for the sun
I'm always looking for the sun to shine

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Eu não sou o meu nome...

Eu não sou o meu nome. Eu sou o teu nome escrito do avesso. Eu sou o meu nome encostado à tua cabeça. O meu nome que foge de mim. O teu nome e o meu nome atados com cordas. O teu nome sou eu quando me debruço por cima do teu ombro. O meu nome a fazer uma pirueta. O meu nome a cair lentamente sobre a tua cama estreita de mulher. O teu nome dentro da minha boca. Sou eu a pedir-te que repitas o meu nome, sussurro a sussurro, letra a letra. Sou eu a dizer o teu nome que trago debaixo da língua. O teu nome no meu sexo estampado. O meu nome no teu sexo estrela. O meu nome é um sexo levantado. O meu nome é uma carícia que me fazes por cima da minha cicatriz. O meu nome é a cicatriz a meio do teu corpo. O meu nome plana por cima das planícies em busca do teu nome. O meu nome cai a pique junto ao teu nome. Nunca digas o meu nome. O meu nome não existe. Não vem em nenhuma página escrita. O meu nome é um cifra escrita a verde ultramarino. Verde ultramarino é a cor de que mais gostam os nossos nomes. O meu nome sobre o teu nome. O teu nome sobre o meu nome. Os nomes muito perto. Os nomes muitos. Os nomes exaltados. O meu nome em cadência lenta. O meu nome é forte como um bicho selvagem. Os nossos nomes percorrem as paisagens como cavalos endoidecidos. Quem diz o meu nome diz amor, qualquer coisa aflita. Quem diz o teu nome deseja ser atingido por um raio, elevado aos céus. O meu nome por dentro do teu nome. O teu nome a pedir perdão por tudo. O meu nome, o teu nome, agarrados por cordas, a cair num precipício. Os nossos nomes são coisas que se comem por dentro. As coisas pelos nossos nomes são aves sagradas. Nome a nome, coisa a coisa. O sol morre dentro do meu nome, na minha boca. O teu nome abriga numa mão fechada o que resta do meu nome. Nomes muito belos. Um nome sem nome. Um nome inefável, inomável. Um nome que ninguém conhece. Só o teu nome sabe o meu nome de cor. O meu nome a subir pelo teu. O teu nome repete o meu nome, nome a nome, sílaba a sílaba. As coisas pelos seus nomes. Os nomes pelas suas coisas. Cada coisa com seu nome, o nome sem fim. Cada nome com sua coisa. O nome do nome no umbigo do mundo.


Pedro Paixão

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Who's Gonna Save My Soul?



Vivemos sobre a terra. Apresento-te
a nossa casa, os nomes que damos ás coisas,
as honras que nos são destinadas,
este corpo de sangue e nervos.
Sobre ele que julgamos vivo
dizes minha razão. A da vida
e a de outras coisas que se percebem.

Os barcos retomam lentos o seu lugar
em volta de um coração marinho.
Como se morre aqui?


João Miguel Fernandes Jorge

terça-feira, 7 de outubro de 2008

slinkachu




Everytime I Try



I want to hold you
But every time I try
Something keeps you
Out of reach
I want to love you
But every time I try
Something keeps
Love away
And I can feel it
So love me right now
Though it won't last
Girl don't make me try
'Cause I'll lose
you forever

Every time
Every time
But every time I try
To put our love out
Like a fire
You keep me in your reach
And every time I try
To throw away my desire
You hold me
So close
And I can feel it
So love me right now

...

domingo, 5 de outubro de 2008

Se Por Acaso



Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silencio,
e a dor é de origem divina.

Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.


Cecília Meireles

sábado, 4 de outubro de 2008

Oceano Nox



Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente…

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idéia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais…



Antero de Quental

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Blur / Dinis Machado




«[...]"Então a tua tia chalou?, perguntou um dia o Zuca", disse Austin "como é que ela faz?, tem ataques?, é maluca de ter de ficar atada?, de ter ataques com espuma na boca ou é só maluca de não ligar a nada?, o rapaz disse que era maluca de falar em comboios e em serradura, que era um bocado triste e não fazia mal a ninguém, fazia-lhe impressão porque ela já não o conhecia, estava paradinha no banco de lona, então o Bertinho Ranhoso dizia que os malucos com uma grande calma às vezes eram os piores, estão com uma grande calma e só pensam em meter facas no bucho das pessoas, o Peida Gadocha dizia que também tinha uma tia maluca, mas era só maluca de comprar vestidos, tinha mais de quatrocentos vestidos, comprava os vestidos e passava-lhes a mão, era maluca de passar a mão pelos vestidos, o Zuca dizia que quatrocentos vestidos era uma peta das antigas, isso ninguém tinha, o Peida Gadocha dizia que se não eram quatrocentos eram duzentos, isso não interessava, ela era chalada de mexer nos vestidos e de estar sempre a dizer está bem mas tenho de mudar de vestido, dizia os meus vestidinhos, os meus vestidinhos, depois ficava nervosa e ia comprar mais vestidos, o Mané Borbulhas dizia que tinha um tio e uma tia que ficaram malucos ao mesmo tempo, foi por causa de uma roca, ele tinha uma roca em cima da mesinha-de-cabeceira, ela começou a embirrar com a roca, que ele gostava mais da roca do que dela, ele disse que nem ligava à roca, estava ali porque tinha um feitio giro, tinha-a comprado na Feira da Ladra, mas para a chatear começou a cantar uma música que é a Traviata com versos a falar da roca, que lindo som que esta roca tem, tatati, tatatitati, ela para se vingar escondeu-lhe as calças e ele não podia sair de casa, cantava a Traviata à procura das calças, e ao fim de três dias chateou-se e saiu para a rua em cuecas e a tocar a roca, foi logo engavetado pelo polícia, a família toda foi à esquadra, a minha mãe levou-lhe umas calças do meu pai, mas ele não quis, que ficava em cuecas e a tocar a roca enquanto não lhe dessem as calças dele, a minha tia disse que lhe dava as calças se ele deitasse a roca fora, depois fizeram as pazes, o meu tio deu a roca à minha mãe, que ma deu a mim, era eu puto, eles depois deixaram de ficar malucos, a roca é que os chalava, o Zuca então dizia que também tinha um tio maluco, andava sempre de boca aberta e a pensar em nada, era despedido dos empregos porque o apanhavam de boca aberta e a pensar em nada, andava aí pelas ruas com livros debaixo do braço, vai lá a casa só no Natal, dizia ele, no último Natal ficou de boca aberta no meio do jantar, fez-me uma festa na cabeça e foi-se embora, deixou a perna de peru no prato, às vezes encontro-o e faz-me uma festa na cabeça, depois ficamos a olhar um para o outro, pergunta-me se eu já ando na escola, eu começo a falar e ele fica de repente de boca aberta, faz-me outra festa na cabeça e vai-se embora, ninguém consegue falar com ele, desliga quando lhe dá o aparte de ficar de boca aberta e de pensar em nada, o que ele gosta é de dar milho aos pombos nas praças, um dia o meu pai deu-lhe uma grande descompostura, disse-lhe o piorzinho, e depois no fim perguntou-lhe e agora o que é que vais fazer?, vou dar milho aos pombos, disse ele, fez-me uma festa na cabeça e foi-se embora de boca aberta, parece que os pombos é que o conhecem bem, poisam-lhe nos ombros e na cabeça, comem o milho da mão dele, um emprego de dar milho aos pombos é que era bom para ele, às vezes ele anda aqui no Largo do Navegante a dar milho aos pombos muito satisfeito da vida, anda de largo em largo, senta-se nos degraus das estátuas e põe-se a ler uns livros que ninguém percebe nada de um gajo chamado Pessoa, não é o António Pessoa, porque esse é o das balanças, é outro, se calhar é um livro sobre pombos, não sei, uma vez foi para a tropa e desertou, foram dar com ele numa praça a dar milho aos pombos, perguntaram-lhe porque é que ele tinha desertado e ele disse que marchar lhe fazia bolhas nos pés, acabou por ser preso e apanhou uma data de castigos, mas punha-se de boca aberta e não ligava a nada, depois mandaram-no para um manicómio e foi uma grande confusão, o médico perguntou ao meu pai se o meu tio tinha uma coisa que era intermitências não sei quê, o meu pai perguntou ao meu tio se ele tinha essas intermitências, o meu tio perguntou de que cor?, depois viram-lhe a língua e os olhos, ele nos intervalos perguntava ao enfermeiro não se importa de me dar o meu Pessanha?, que é um livro de outro gajo, o médico fazia-lhe perguntas para malucos, mas ele não ligava, só ligava ao Pessoa e ao Pessanha, queria era ficar de boca aberta a pensar em nada, devia sentir a falta dos pombos, acabaram por mandá-lo embora porque não havia lugares, os lugares eram precisos para os malucos assassinos e para os que espumam da boca, vai lá a casa no Natal, agora mesmo está ele, até aposto, a dar milho aos pombos num largo qualquer, a ler livros e de boca aberta, há malucos à brava mas não são perigosos, o meu pai diz que o Bigodes Piaçaba é maluco de ajudar os pobres, de querer pias limpas e banheiras e de acabar com os percevejos, de fazer umas grandes fitas com os senhorios e de querer endireitar o mundo, é um maluco que pensa nas coisas, em escolas e em hospitais, há malucos com outros apartes, de andarem a falar sozinhos ou de arriarem sempre do melhor, como o Joca Farpelas, ou de fazerem discursos que não interessam nada, e os malucos de contar o dinheiro, contam o dinheiro quinhentas vezes, depois falta-lhes um tostão e voltam a contar, se a porra do tostão não aparece até ficam doentes de cama, e os malucos de tocar pífaro só gostam de estar a tocar pífaro e o resto não interessa, todos os gajos têm um tio maluco, às vezes há gajos que têm uma data de malucos na família, o Padeirinha diz que a avó dele é maluca de dizer que lhe roubam coisas da caixa da costura, os dedais, as agulhas e os botões, um dia foi cá uma fita por causa de um botão de madrepérola, o avô do Padeirinha foi aos arames e disse que queria que o botão se fodesse, e bateu com a porta como de costume, o Padeirinha anda sempre a arranjar a fechadura, pede à avó que acabe com a mania que lhe roubam a caixa da costura e ao avô para não bater com a porta, mas eles não ligam, os malucos não ligam, é esse o aparte deles, até a minha mãe um dia acordou maluca, subiu-lhe à cabeça uma coisa que é a ureia, começou a dizer ao meu pai que andava um cágado nas dunas, o meu pai à rasca dizia um cágado nas dunas?, um cágado nas dunas?, levou-a para o hospital das pernas partidas, conhecia lá um enfermeiro, o meu pai começou a dizer às pessoas todas que a minha mãe dizia que andava um cágado nas dunas, uma enfermeira disse que ali era o hospital das pernas partidas, das doenças de pus e coisas assim, dizia que as doenças de cágados nas dunas era no manicómio, uma velhinha caquéctica e iglantónica perguntou qual cágado?, quais dunas?, um gajo que estava ao pé a gozar o prato disse que devia ser um cágado de patins nas dunas do Pólo Norte, o meu pai disse para o gajo ir gozar com os cornos do tio dele, o gajo a gozar perguntou quais cornos?, qual tio?, foi uma grande zaragata, o polícia que lá estava tirou o chinfalho e disse daqui a bocado dou-lhes o cágado, depois ficaram todos na bicha, eram mais de mil, a minha mãe começou a falar com a velhinha sobre o cágado, depois o enfermeiro conhecido do meu pai foi falar com o médico que o atendeu, ele disse que o cágado nas dunas era da ureia, nessa altura a minha mãe já não falava no cágado, dizia ao meu pai para ele não comer as prateleiras e as cortinas, que as cortinas e as prateleiras faziam falta, para ele comer a sopa de massa com grão que estava na panela, era só pôr ao lume e aquecê-la, o médico disse ao meu pai que tivesse calma, ele sabia que o meu pai não comia as prateleiras e as cortinas, depois deram uma injecção à minha mãe, ela ficou melhor, pelo menos não dizia peva, vieram de táxi e a minha mãe no meio do caminho perguntou ao chofer se ele tinha cortado as unhas dos pés e tomado o remédio para a tosse, o chofer perguntou ao meu pai se a minha mãe estava a gozar com ele, o meu pai disse que era da ureia, o chofer disse que até cortava as unhas dos pés todas as semanas, desejou as melhoras da minha mãe, chegaram a casa e a minha mãe começou a dizer que o meu pai a tinha enganado, que a tinha trazido para ali para lhe tirar as cuequinhas cor-de-rosa com pintinhas verdes, mas que ele se enganava, que ela não trazia as cuequinhas cor-de-rosa com pintinhas verdes, trazia umas cuecas pretas de renda, o meu pai telefonou para o enfermeiro e só dizia que puta de vida, depois deram outra injecção à minha mãe, ela ficou de cama dois dias e acordou boa, não se lembrava de nada, o meu pai é que até fica amarelo quando se fala naquilo".» [...]


Dinis Machado, O que diz Molero

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

os vossos lugares - Faro



Faro - Portugal

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Have a Nice Day



«As ilusões», dizia-me o meu amigo, «talvez sejam em tão grande número quanto as relações dos homens entre si ou entre os homens e as coisas. E, quando a ilusão desaparece, ou seja, quando vemos o ser ou o facto tal como existe fora de nós, experimentamos um sentimento bizarro, metade dele complicada pela lástima da fantasia desaparecida, metade pela surpresa agradável diante da novidade, diante do facto real».

Charles Baudelaire

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