sexta-feira, 2 de abril de 2010

Ed Harcourt / Nuno Júdice ( último post )



Em que pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.


Nuno Júdice

quarta-feira, 17 de março de 2010

The Tormentos



Vamos pela parede.

A mamã tem asas castanhas sedosas; eu, asas cor de violeta; ao abri-las vêem várias camadas de gaze. Prosseguimos pelo muro; com antenas finíssimas tocando nos galhos, nos ramos, de bálsamo, de salsa e de outras coisas.

Parece que estamos livres dos semelhantes que são como azougue.

A cada minuto, a lua é mais branca e escura.

E resplandece por todo o prado, aqui e ali, a Virgem dos Insectos.

Com asa e diadema e muitíssimos pés.



Marosa Di Giorgio

segunda-feira, 15 de março de 2010

Soulsavers



“Renuncio a ver-te por muito tempo, meses, anos talvez. Parece-me que, por esse preço, e separada de ti pela imensa viagem empreendida, que nesta carta te posso dizer o que, se te falasse de viva voz, seria intolerável. Sou toda eu aquilo que tu viste. Quando te falei, preferia morrer do que deixar de ser a teus olhos, perante ti, aquilo que gosto de ser. Gosto dos prazeres que viste. Amo-os a tal ponto que tu deixarias de contar para mim se eu não soubesse que tu os amas tão desesperadamente como eu. Mas é bem pouco dizer como os amo. Sufocaria se me faltasse, mesmo por um instante, a clareza da verdade que me habita. O prazer é toda a minha vida. Nunca escolhi, e sei que nada sou sem o prazer em mim, e que tudo aquilo de que a minha vida é uma espera, não existiria sem o prazer. Seria o universo sem luz, o caule sem flor, o ser sem vida. O que digo é pretensioso, mas é sobretudo insignificante ao pé da perturbação que me invade, que me cega, ao ponto de, perdida nela, já não ver nem saber nada. Ao escrever-te apercebo-me da impotência das palavras, mas sei que a longo prazo, apesar da sua impotência, elas te atingirão. Quanto te atingirem, adivinharás aquilo que não pára de me extasiar, de me extasiar de olhos revirados. O que os insensatos dizem acerca de Deus não é nada comparado com o grito que uma tão louca verdade me faz lançar..."


Georges Bataille

domingo, 14 de março de 2010

Darker My Love



Se partires, não me abraces - a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces -

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém - longe de ti, o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.

Se me abraçares, não partas.


Maria do Rosário Pedreira

segunda-feira, 8 de março de 2010

Viking Moses




Tu já me arrumaste no armário dos restos
eu já te guardei na gaveta dos corpos perdidos
e das nossas memórias começamos a varrer
as pequenas gotas de felicidade
que já fomos.
Mas no tempo subjectivo
tu és ainda o meu relógio de vento
a minha máquina aceleradora de sangue
e por quanto tempo ainda
as minhas mãos serão para ti
o nocturno passeio do gato no telhado?




Isabel Meyrelles

sexta-feira, 5 de março de 2010

Silvanus Slaughter



I will arise and go now, and go to Innisfree,
And a small cabin build there, of clay and wattles made:
Nine bean-rows will I have there, a hive for the honey-bee,
And live alone in the bee-loud glade.

And I shall have some peace there, for peace comes dropping slow,
Dropping from the veils of the mourning to where the cricket sings;
There midnight's all a glimmer, and noon a purple glow,
And evening full of the linnet's wings.

I will arise and go now, for always night and day
I hear lake water lapping with low sounds by the shore;
While I stand on the roadway, or on the pavements grey,
I hear it in the deep heart's core.



W.B. Yeats

terça-feira, 2 de março de 2010

Midlake



Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramago & coisas assim
eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora do liceu:
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos de andar como dantes,
chamando do fundo do meu coração.





Manuel António Pina

+++